Quais as consequências das migalhas?

 



Quais as consequências das migalhas?
 
Durante muito tempo, tudo o que conhecíamos por casais felizes eram os protagonistas da Sessão da Tarde. Crescemos e vivemos sem sequer imaginar a possibilidade de encontrar outros formatos e valores.
 
Aquele era o normal.
Ainda que vivessem perdidos na mata, ficariam felizes e seriam eternos porque era o normal. Ninguém questiona a normalidade.
 
Depois que Leila e Rafaela morreram queimadas em Torre de Babel, nossas vizinhas idosas se apresentaram como amigas até o fim dos dias e nossa prima decidiu morrer solteira porque “não há homem no Brasil pra ela”, as coisas começaram a caminhar.
Lenta e falsamente.
 
A partir de um longo processo, nós começamos a acordar e questionar toda a construção de um sistema que não se baseia só na televisão, mas na vida real. Começamos a perceber que o nosso final poderia e deveria ser feliz também - independente do formato.
Com a nossa voz, a indústria visual foi obrigada a apresentar a famosa representatividade.
De Leila e Rafaela queimadas, recebemos Clara e Marina casadas.
 
É uma pena que elas quase não tenham diferenças.
 
Clara e Marina tiveram o final feliz, mas sua representatividade foi bem porcamente construída a partir de traição num momento em que o homem no meio sofria de uma doença. Elas foram as vilãs diante de um público e as salvadoras pelos olhos de outro.
Nós aceitamos - sem beijos, sem grandes abraços, sem cenas de amor - porque só conhecemos o outro lado. Aquele, do casal na mata ou do fogo em um shopping.
 
Nós aceitamos as migalhas, ainda que construídas por queerbatings (insinuações da chance de formar um casal, ainda que elas nunca sejam), porque qualquer sinal de final feliz fora daquele “normal” parece um peso tirado das nossas costas. Pela primeira vez, sentimos que podemos amar diante de todos - em rede nacional.
 
E qual a consequência disso? Clara e Marina são mesmo tudo o que a gente sonhou? Delphine e Cosima - que quase não tem cenas juntas - são mesmo a representatividade perfeita para mulheres que são apagadas até no meio LGBT? Nós devemos abraçar essas migalhas, ainda que elas sejam o que são?
 
É impossível negar a importância de tudo que esses casais trouxeram para meninas que ainda não entendiam sua sexualidade, para famílias que assistiram de olhos e corações abertos, para um passo à frente no “novo normal”. Não nego que comer migalhas é melhor do que morrer de fome.
 
Mas me pergunto, todos os dias, quando verei duas mulheres que se amam como protagonistas, vivendo um clichê no meio da mata ou passeando no shopping, criando filhos, sendo gigantes no que escolheram ser e tudo isso ali, na Sessão da Tarde. Todos os dias sigo escrevendo com o mesmo questionamento: é clichê pra quem?
 
Para mim, como mulher que ama mulheres, três cenas e um selinho ou um queerbating bem feito não basta. E eu trabalharei para abrir essa ideia para mais pessoas.
Não quero migalhas. Eu acho que nós merecemos banquetes. E você?
 
(Esse texto foi escrito para a [EMANA DA VISIBILIDADE LÉSBICA do grupo Dias de Leitura)

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